📚 Capítulo 1 – A Experiência 47
O som dos alarmes não tocava ali.
Na Ala 6, silêncio era regra. Ali, a Umbra trabalhava em seus experimentos mais delicados. E mais condenáveis.
Kairo deslizava entre os corredores de luz azulada com o jaleco limpo, rosto impassível, e um crachá com nome falso. Cientista de nível 4. Biólogo genético. Especialista em alterações pré-natais.
Ninguém sabia que ele era uma Sombra da Nox. Um fantasma.
Ele estava ali há dois anos.
Tempo suficiente para entender o que realmente acontecia por trás das portas brancas.
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Ela estava deitada, olhos fixos no teto. As mãos amarradas. Grávida de sete meses.
Seu nome de nascimento havia sido apagado.
Nos arquivos da Umbra, era chamada apenas de V47 — "Vítima 47".
Era latino-americana, mas não falava espanhol. Tráfico humano silencioso, importado das rotas esquecidas.
Eles diziam que o feto era perfeito para a nova fase do Projeto Genesis.
Kairo lia os relatórios com raiva contida.
"A combinação genética da mãe e do feto demonstrou anomalias que, com os compostos certos, podem se transformar em predisposição absoluta: memória acelerada, inteligência lógica, resistência física, tolerância à dor."
O problema era o custo.
Todas as outras tentativas haviam falhado.
Exceto essa.
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Kairo entrou na sala. A mulher virou o rosto devagar. Ela reconhecia aquele homem. O único que nunca a tocava. O único que a chamava de "ela", não de "isso".
Ele pegou a ficha do carrinho. O feto estava estável. O protocolo exigia mais uma injeção.
Mas ele não faria isso.
— Está quase na hora. — ele disse, baixando a voz.
Ela não respondeu. Mas os olhos dela — sempre vazios — brilharam por um segundo.
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A fuga seria em dois dias.
A Nox não sabia.
Ninguém sabia.
Ele ia tirar aquela criança dali.
Não por compaixão. Não por revolta.
Mas porque aquilo que estavam criando seria monstruoso se deixado nas mãos erradas.
Kairo precisava moldá-la antes que o mundo a usasse.
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Na noite seguinte, ele entrou na Ala 6 com as roupas ensanguentadas.
A mulher já estava em trabalho de parto. Os alarmes não tocaram. Ele tinha apagado o sistema.
O bebê nasceu calado. Não chorou. Não estremeceu. Apenas abriu os olhos.
Olhos escuros demais. Fixos demais.
Kairo olhou para ela por longos segundos.
— Você não é uma entre mil.
— Você é o zero. O ponto de partida.
— E vai me odiar por isso.
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Ele deixou o prédio com o bebê envolto num tecido térmico.
A mãe havia morrido no parto.
No relatório, a Vítima 47 foi registrada como falha.
O feto, como desaparecido.
E o projeto seguiu.
Como sempre.
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Kairo voltou para a Nox sujo de sangue, com os olhos fundos e a respiração contida como quem carrega algo que não pode ser revelado — nem solto.
Ele chegou sozinho.
A criança envolta em tecidos térmicos, quieta como sempre. Não chorava. Só observava.
O protocolo exigia relatório completo, ele era o número 1 sabia o que tinha que fazer. Explicações. Registro de falha de missão. Rastreamento do corpo do agente.
Mas Kairo não deu nada disso.
Entregou um documento curto, impreciso, calculadamente insuficiente.
"Fui descoberto. A missão foi comprometida. Só consegui recuperar um ativo experimental."
Um bebê.
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O Conselho da Nox olhou para ele com frieza.
— Você invadiu uma instalação genética da Umbra e voltou com… uma criança?
— Ela não é uma criança qualquer. É uma arma. Eles criaram algo que nem sabem conter.
— E por que deveríamos acreditar?
— Não devem. Apenas observem.
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Kairo não pediu perdão. Nem voltou ao posto anterior. Ele sabia o que aconteceria.
Foi rebaixado. Retirado da ativa.
Designado para a Colônia Quatro, uma colônia esquecida, considerada um cemitério para agentes fracassados e crianças com baixa aptidão.
Oficialmente, ele era um agente descartável.
Na prática, era um guardião de promessas mortas.
Era perfeito.
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Ninguém fez perguntas sobre a menina.
Ela foi registrada como órfã, sem histórico, sem dados genéticos rastreáveis.
O banco biológico rejeitava suas amostras.
Não havia nome. Não havia identidade.
Havia apenas um olhar que já sabia demais.
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Kairo a chamou de Zero.
— Você não tem passado.
— Você não será numerada como os outros.
— Porque o que você precisa se tornar… ainda não existe.
Ele começou a treiná-la na Colônia Quatro, usando protocolos antigos da Nox, misturados com métodos que ele próprio havia aprendido na Umbra.
Ela aprendeu a andar em silêncio antes de aprender a falar com clareza.
Aprendeu a desaparecer antes de ser vista.
E ele repetia sempre a mesma coisa:
— Um dia, vão querer te usar.
— Todos.
— Então, aprenda a não ser usada.
— Aprenda a ver tudo.
— E, quando chegar a hora… não escolha um lado. Escolha o mundo.