Cherreads

Chapter 3 - Dias para o silêncio

Pov Zero

Tinha sete anos quando o silêncio começou a mudar de som.

Antes, o silêncio da fazenda era simples. Era o som das pedras no chão seco, do vento passando por frestas, dos passos pesados do Pai. Era o som da minha casa.

Mas naquela semana, o silêncio tinha… outra coisa.

Parecia mais fundo. Mais comprido.

Parecia esconder algo.

**

No primeiro dia, ele me acordou mais cedo que o normal.

A luz ainda não tinha nascido, e eu estava deitada no chão do meu quarto — gostava mais de dormir ali do que na cama. Ele entrou e disse:

— Vem. Veste o que for mais confortável.

Levantei sem perguntar.

A gente andou por uma trilha estreita no meio do mato, por um tempo que não contei. Quando paramos, ele me entregou uma venda.

— Hoje, você vai ouvir o tempo.

Não entendi. Mas coloquei.

Ele me girou três vezes, depois sumiu. Literalmente. Nada de passos, nem de folhas quebrando.

Fiquei ali.

Com os ouvidos abertos. O coração acelerado.

E então ouvi: uma respiração a três passos de mim.

Girei. Acertei com o cotovelo.

Ouvi um som baixo, como um "hm".

Ele pegou a venda e disse:

— Melhor que ontem.

— Mas ontem eu nem tava vendada.

Ele sorriu. Só com o canto da boca.

E por um segundo… achei que ele estava com pressa.

**

No segundo dia, ele deixou que eu escolhesse o horário do treino. Nunca tinha feito isso.

— Sério?

— Escolhe.

— Agora. — falei rápido, como se ele fosse mudar de ideia.

No galpão, ele montou obstáculos novos — caixas empilhadas, cordas presas no teto, caminhos estreitos entre cadeiras.

— Hoje você traça seu próprio percurso.

— Não tem regras?

— Só uma: termina.

Corri, saltei, rolei por baixo das cordas. Não era só um exercício. Era um teste.

Quando terminei, ele anotou algo num caderno.

— Você tá me avaliando? — perguntei.

— Sempre avaliei.

— Tá me preparando pra quê?

Ele me encarou. E naquele olhar, eu soube.

Algo estava errado.

**

No terceiro dia, ele me levou até a cidade. Mas dessa vez, não era só para observar.

No meio do caminho, no caminhão em que estávamos escondidos, ele disse:

— Tem uma missão.

Meu coração acelerou. Era a primeira vez que ele dizia aquela palavra pra mim.

— Real?

— Improvisada. Mas real.

Ele me entregou uma foto borrada, com o rosto de um homem e uma carteira comum.

— Esse cara passou informações da Nox pra uma célula da Umbra. A gente só vai confirmar o ponto de encontro. Você vai me dizer com quem ele se encontra, o tempo que leva, e depois sumir da vista.

— Só isso?

— Se conseguir, você é melhor do que eles pensam.

Chegamos. Eu estava vestida com roupas comuns, boné e mochila escolar.

Pela primeira vez, me senti fora da fazenda de verdade. O mundo era feio, mas vivo.

Eu segui o homem.

Ele encontrou uma mulher. Trocaram um envelope. Ela olhava pros lados com pressa.

Fiquei atrás de uma barraca de frutas.

Contei o tempo. Analisei o caminho que ela tomou na saída.

Voltei correndo.

Quando cheguei até ele, ele só perguntou:

— Nome?

— Não tinha crachá, mas ouvi a voz dela chamando por "Lena".

Ele assentiu.

Depois me entregou uma rosquinha velha e disse:

— Se disfarça comendo. Você fez bem demais pra uma primeira vez.

Sentei na calçada e comi com a mão.

Foi a melhor coisa que já comi.

**

Antes de voltarmos, ele me levou a uma livraria pequena e empoeirada.

— Escolha um livro. Qualquer um.

— Por quê?

— Porque você precisa carregar algo que não seja só ferro.

Andei pelas prateleiras. Não sabia o que escolher.

Meus olhos pararam num livro grosso, cheio de mapas. Não tinha figuras de pessoas, só caminhos, fronteiras, nomes estranhos.

Peguei sem pensar.

Ele olhou e disse:

— Boa escolha.

E sorriu. De verdade.

Foi a única vez que ele pareceu um pouco… leve.

**

No caminho de volta, no balanço da estrada, eu perguntei:

— Pai... se eu sou sua, qual é o seu nome?

Ele olhou pela janela por um tempo. Depois respondeu:

— Kairo.

— Kairo. — repeti.

Ele assentiu.

Não disse mais nada.

Mas pra mim, era tudo.

Eu tinha um nome. Agora ele tinha também.

**

No quarto dia, ele me deixou sozinha no mato.

Disse que era um exercício.

— Três horas. Sem ser vista. Sem ser ouvida. Sem sair da área.

Fiz tudo certo.

Quando ele voltou, parecia aliviado. Como se achasse que eu ia falhar.

Ele não dizia, mas estava com medo.

E não era medo de mim.

Era medo do que vinha depois.

**

No quinto dia, ele me chamou depois do jantar.

As outras crianças estavam dormindo. Eu já sabia que aquilo era sobre mim.

Ele me entregou uma caixa de madeira pequena.

Dentro, tinha uma faca dobrável. Preta. Com meu nome gravado: Zero.

— Por que agora?

— Porque há coisas que você precisa ter… antes que te tirem tudo.

Senti a garganta apertar. Não chorei.

Mas o silêncio entre nós foi pesado.

— Você vai morrer?

— Não.

— Vai me deixar?

Ele demorou.

— Vou sumir.

E então, com uma voz que parecia mais cansada que dura:

— Mas você vai continuar.

**

No sexto dia, ele passou o tempo todo trancado no quarto.

Eu fiquei do lado de fora, sentada, escutando a caneta raspar o papel.

Ele estava escrevendo algo. Não me chamou.

À noite, deixou uma comida diferente no meu prato.

Meu preferido: arroz queimadinho do fundo da panela.

Era estranho.

O tipo de estranho que a gente sente no corpo antes da cabeça entender.

**

No sétimo dia, ele me acordou com um papel debaixo do travesseiro.

Só duas frases.

"O mundo não brinca.

Mas você pode mentir pra ele."

– K

Fui até o quarto dele.

Vazio.

A cama arrumada. A faca sumida. O caderno também.

Fui até o galpão. Nada.

Fui até a trilha no mato. Silêncio.

Fiquei ali.

Horas.

**

Ninguém falou sobre o sumiço dele.

As outras crianças continuaram treinando. A rotina seguiu.

Mas uma semana depois, uma van da Nox chegou.

Me chamaram. Disseram que eu seria realocada.

— Colônia de Promessas.

Eu perguntei se era porque ele sumiu.

O instrutor só disse:

— É porque você já não pertence mais a este lugar.

E aquilo doeu mais que qualquer queda.

**

Entrei na van.

Na mochila, levei só duas coisas: o livro de mapas…

E a faca.

**

Enquanto a fazenda sumia pela janela, eu pensei na venda.

No som do tempo.

Na missão.

Na rosquinha.

E entendi, sozinha:

Ele nunca quis que eu soubesse onde ele ia.

Ele quis que eu soubesse como sobreviver sem ele.

E era isso que eu faria.

A partir dali, eu seria só sombra.

E o mundo teria que aprender a conviver com isso.

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