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O Nome Que Reencarnei Para Enterrar

Denis_Nogueira
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Synopsis
Rodrigo morreu como um monstro — torturador, assassino, traidor da promessa feita à irmã que não conseguiu proteger. Mas a morte não foi o fim. Reencarnado em um mundo de magia e miséria, ele desperta como Elian, um bebê marcado por lembranças que não deveria ter. Um novo nome. Uma nova chance. Mas como se redimir... quando nem mesmo se perdoa? Entre sombras que sussurram seu passado e uma família que ele teme destruir, Elian carrega um desejo silencioso: Enterrar Rodrigo. E talvez, um dia, merecer ser chamado de Elian.
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Chapter 1 - O Último Sussurro Antes da Morte.

A tarde desabava em São Paulo como um lamento.

O céu, coberto por nuvens densas e pesadas, chorava com fúria. A chuva caía em pancadas, e os raios iluminavam a cidade como punhais de luz cortando a escuridão precoce. Trovões ribombavam como gritos de um deus injusto — ou talvez apenas surdo ao sofrimento humano.

Para muitos, aquele era um sábado qualquer. Um convite para o descanso, para o conforto de um filme qualquer, um jogo eletrônico, ou os lençóis macios de uma cama quente.

Mas não para Rodrigo.

Na solidão de seu quarto, deitado em lençóis úmidos de suor, sangue, urina e fezes, ele sentia o gosto metálico do fim. Um gosto amargo, ferroso, que arranhava sua garganta e escorria entre os dentes. Cada respiração era um esforço. Cada batida do coração, um golpe.

E na beira do abismo, os fantasmas vieram.

Memórias, como vultos desesperados, tomavam sua mente. Dor, perda, arrependimento. Era verdade, então… O que dizem sobre os últimos momentos de vida. Que o passado vem em ondas, como se a alma precisasse revisitar tudo aquilo que jamais conseguiu enterrar.

Rodrigo sentia o corpo arder com as facadas recém-sofridas, o sangue pulsando de dentro para fora, como se até o próprio corpo quisesse expulsá-lo deste mundo. Mas nenhuma dor física se comparava à ferida que carregava há mais de uma década.

Ele tentou se agarrar às lembranças boas, mas elas eram poucas — frágeis como vidro. Lembrou-se do dia em que a mãe anunciou que estava grávida. Ele tinha seis anos. O mundo ainda era um lugar onde os sonhos nasciam.

O pai, com os olhos cheios de um orgulho sereno, lhe disse:

— Agora que você é irmão mais velho, tem que proteger sua irmã.

Como se fosse uma profecia. Como se aquelas palavras o condenassem.

Ele acreditou. E jurou. Jurou de coração puro que protegeria Luciana, aquela criaturinha que nem havia nascido.

E, por um tempo, ele conseguiu. Brincavam juntos no quintal da casa simples, riam, corriam. A pobreza nunca lhes pareceu uma maldição — não enquanto estavam juntos. Eles eram felizes. Ele se sentia inteiro.

Mas a vida… a vida não perdoa os inocentes.

O tempo avançou, e Rodrigo viu a casa se esvaziar de sorrisos. O pai perdeu o emprego. Sem registro, não recebeu nada. A mãe limpava fábricas com as mãos calejadas, os joelhos marcados, o corpo cansado.

E mesmo assim, ela sorria. Ela tentava.

Mas o mundo é cruel com quem tenta resistir à miséria.

Sem opções, o pai recorreu a agiotas.

E, naquela noite, tudo foi tirado deles.

Rodrigo se lembrava com uma precisão dolorosa — como se a cena estivesse gravada a ferro em sua retina.

A porta sendo arrombada.

Quatro homens entrando.

O som do tiro.

O corpo do pai caindo e sendo esfaqueado.

O grito da mãe.

O sangue no chão.

O peito perfurado.

O cheiro de morte invadindo tudo.

Luciana chorava. Os olhos dela buscavam os dele, implorando por proteção. E ele… não se mexia. O medo o consumia. As pernas não respondiam.

Ele falhou.

Mas num impulso desesperado, correu. Arrancou a máscara do homem armado. Queria lutar. Queria fazer algo.

E então viu.

Lucius.

O amigo do pai.

O homem que frequentava a casa. Que tomava café na sala. Que ria com eles.

A traição cortou mais fundo do que qualquer faca.

“Por quê? Por que ele fez isso com meu pai?" — essa pergunta perdurou até os dias atuais, corroendo Rodrigo por dentro como uma ferida que nunca cicatrizava.

Mas foram as palavras seguintes que dissiparam suas dúvidas internas como um sopro gélido varrendo as cinzas de sua esperança.

— Eles viram meu rosto — Lucius dissera.

E sem hesitação:

— Precisamos matar os dois.

Aquela frase ecoa até hoje.

"Precisamos matar os dois."

Rodrigo correu até Luciana. Tentou protegê-la. Queria pelo menos cumprir sua promessa, nem que fosse nos segundos finais.

Um estampido.

A dor veio como uma explosão ardente, incendiando cada nervo, cada fibra. Era como se seu corpo inteiro tivesse sido engolido pelas chamas do inferno. O mundo girou. O chão o abraçou.

Outro disparo.

Um som seco, cruel.

Luciana.

O nome gritou dentro dele antes mesmo de sair por seus lábios.

O sangue dela — quente, vermelho demais — espirrou no chão.

Silêncio.

Um silêncio mais alto que qualquer grito. Um silêncio que o esmagou por dentro.

Rodrigo não sentia mais o próprio corpo, mas sua alma…

Ela gritava.

Ele se arrastou até ela. Sentiu o sangue escorrer dos dois. Os olhos dela se apagando.

E ele... só conseguia chorar.

Chorar e gritar por dentro.

"Me perdoa."

Antes de perder a consciência por causa da dor, os últimos barulhos que ouviu foram de passos e sirenes bem ao fundo.

Quando acordou no hospital, o rosto de um médico desconhecido o recebeu.

Mas ele não queria conforto. Não queria curativos.

— Cadê minha irmã? Onde ela está? Me deixa ver ela! Por favor!

Tentou se levantar apressadamente. Dor percorreu seu corpo, e então, a resposta do médico veio instantânea em forma de sedativo. Silêncio forçado.

Dois dias depois, os policiais confirmaram o que o coração já sabia.

Os três estavam mortos.

Rodrigo quebrou por dentro.

Chorou como se quisesse vomitar a alma.

Se culpou.

Como uma maldição gravada nos ossos.

"Foi minha culpa."

"Se eu não tivesse tirado a máscara..."

"Se eu tivesse protegido ela..."

A vida seguiu. Mas para ele, era só sobrevivência.

Cresceu num orfanato. Sem carinho. Sem paz. Sem futuro.

Se afundou em drogas. Em raiva.

E a raiva virou ódio.

O ódio virou propósito.

Quando completou dezoito anos, decidiu que não importava o que fosse preciso — ele encontraria Lucius.

Mas nunca o encontrou.

E no vazio da frustração, matou outros. Bandidos. Inocentes. Quem estivesse no caminho.

Começou por vingança.

Depois, por conveniência.

Depois… pelo gosto do sangue.

Matava e ria.

Chorava e transava.

Usava drogas para esquecer.

Se deitava com mulheres para fingir que sentia algo.

Mas à noite, no silêncio do quarto, só restava a culpa.

A maldita culpa.

"Eu prometi."

E agora, ali, deitado novamente, sentia que seu fim havia finalmente chegado.

Homens invadiram sua casa. O amarraram.

E entre eles...

Lucius.

Mais velho.

Mais frio.

— Você é insistente, hein, Rodrigo?

Rodrigo cuspiu sangue e palavras:

— Eu vou te matar... nem que seja no inferno!

Lucius sorriu. Um sorriso que doía de ver.

Um sorriso sem alma.

— Hora de reunir sua família. Está na hora de descansar.

Facadas.

Dor.

Merda e Urina.

Gritos abafados.

Lágrimas misturadas ao sangue.

Rodrigo se afogava em seu próprio corpo.

Enquanto a dor devorava seu corpo de dentro para fora, pensamentos nebulosos começaram a surgir em sua mente, como ecos distorcidos no fim de um corredor escuro.

“Morrerei sozinho neste quarto...”

E talvez fosse verdade. Talvez já estivesse escrito.

Mas ele não queria. Não assim.

Queria que alguém, qualquer um, aparecesse.

Que o encontrasse.

Que pelo menos comparecesse ao seu velório, nem que fosse por piedade.

Mas então uma resposta cruel surgiu, seca, definitiva, como uma sentença gravada em ferro:

“Eu não tenho mais ninguém.

Sem parentes. Nem amantes. Nem amigos.”

Silêncio.

Era isso o que restava.

Nada além da dor.

E o sangue que esquentava os lençóis como um lençol vermelho de despedida.

Rodrigo já não conseguia mais confiar em ninguém.

Era uma desconfiança enraizada, cravada fundo como uma lâmina que nunca foi retirada.

Ele sabia disso. Sabia que era injusta, até irracional. Mas como lidar com um trauma que nunca cicatrizou?

Como seguir em frente quando as memórias do passado continuam sangrando dentro de você?

Fez terapia. Tentou. Sentou diante de profissionais, falou sobre sua dor, sobre o que viu, sobre o que perdeu.

Mas palavras não curam o que foi destruído.

Elas só reorganizam os cacos.

E Rodrigo estava em pedaços há anos.

Enquanto a escuridão finalmente se estendia sobre ele como um lençol silencioso, abafando os sons, os sentidos, a vida...

Um último pensamento surgiu.

Frágil. Tímido. Egoísta.

Um sussurro perdido em meio ao caos.

"Talvez... só talvez... eu gostaria de vê-los de novo.”

E então, antes do fim.

Antes do vazio engolir tudo o que ele era.

Antes que a última fagulha de consciência se apagasse...

Uma coruja pousou do lado de fora da janela.

Silenciosa. Solene.

Seus olhos fixos em Rodrigo, como se enxergassem além da carne — além da dor.

Ela o encarava profundamente.

Como se soubesse.

Sabia.

Dos pecados que ele carregava.

Dos medos que o corroíam.

Dos anseios que ele jamais teve coragem de confessar.

Rodrigo a encarou de volta, com os olhos já opacos, o corpo à beira do fim, e sussurrou, numa voz que mal ultrapassou os próprios lábios:

— Me perdoem...

As palavras flutuaram no quarto como um último sopro de humanidade.

E quando o coração finalmente parou, a coruja alçou voo, desaparecendo na escuridão da noite.

Como se levasse consigo sua alma.

Ou sua culpa.